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Entrevista realizada por Nuno Espinal em Setembro de 1984

Subo a escadaria de pedra que procede o átrio de entrada de um palacete, ali para os lados de S. Bento. Estou em casa de Amália Rodrigues.

Aguardo-a, Amália não se faz esperar.

Apresento-me, dou-lhe o último número da revista, folheia-o silenciosamente.

Caem-lhe os olhos num ou noutro apontamento, prende-se a um artigo: A Guitarra Portuguesa. Explico-lhe ao que venho.

 

“Interessa-me que a Senhora dê a sua opinião…a evolução do Fado…as várias expressões do Fado…”

Amália silenciosa, os olhos a perscrutar as folhas da revista. Permanece em silêncio, continua-o, um silêncio que já se prolonga. Até que diz:

“Sabe? Não sou uma mulher culta, nem conte que vá responder a perguntas de cultura. Acontece que nem tenho mais que três anos de escola…”

Fico surpreso, mesmo embaraçado.

“A intenção não é tanto essa. Mas a Senhora tem uma vivência muito rica, muito cheia…”

Amália interrompe, parece agastada.

“O que decerto quererá dizer é que não sou parva. Tenho um tipo de intuição que me deixa perceber as coisas…”

Volta a folhear, envolve-se em novo silêncio, volta ao título: «A Guitarra Portuguesa, Sua Origem e Evolução Histórica».

É então que pela primeira vez me dirige atentamente o olhar. Um olhar pleno de ironia, uma certa ponta de troça, que nem dissimula ao dizer:

“Não deixo, por exemplo, de saber que a guitarra tem doze cordas”.

Era o bastante, Amália dizia-me tudo. Muito mais que os conteúdos, as formas, as realidades, muito mais que as rudezas, as filosofias, as especulações das coisas, muito mais importante que tudo isso, em Amália o que conta é o sentir das coisas. Já o sabia. Tinham-me prevenido. Saber da guitarra, saber do fado, em Amália é antes de tudo saber-lhe o sentir. O resto não é ou pouco é para Amália. É essa a razão que a define, é essa a imagem que lhe auréola o retrato: “sou fadista por condição, mas também por sentimento”.

A entrevista acabaria por ser outra. O guião já memorizado, as perguntas já decoradas, deixavam de ter sentido. Tudo iria correr ao sabor do acaso. Afinal, tanto ao jeito de Amália…

A Cantiga começou ao pé da porta

-Amália só seria Amália em Portugal. Concorda com a afirmação?

-De certa maneira concordo. Foi este o meu destino, tudo teria assim de acontecer. As pessoas disseram-me que eu era fadista e comecei a cantar. A cantiga começava ao pé da porta da vizinha que lavava a roupa, que passava a ferro, que costurava. E foram aquelas cantigas que eu aprendi: Sou fadista por condição, mas também por sentimento. O fado teria de acontecer-me.

-O fado ao pé da porta. Por certo o fado típico da Mouraria, o de Alfama, por vezes até o fado canalha…

-(Amália um tanto irritada) O fado tem de ser canalha quando as pessoas que o cantam são canalhas, não acha? Mas porque é que o fado tem de ser canalha? Encontre-me aí na sua cabeça uma explicação para tal…

-Nos seus primórdios o fado esteve ligado a ambientes de taberna, onde os chamados” fora da lei”…

-Bem, nós nascemos com poucos centímetros e podemos acabar com um metro e noventa ou mais. Eu, por exemplo, nunca fui canalha e o Pátio dos Quintalinhos, onde eu nasci, nunca me deu para isso…Sou filha de gente da Beira Baixa, habituada a não dizer palavrões, chorava mesmo quando já espigadota mos diziam, por isso nada tenho a ver com esse tal fado canalha, nem tão pouco gosto…

-Mas admite que possa haver um tipo de fado criado e cantado em ambientes marginais…

-Sim…talvez… admito, mas eu não gosto. Mas admito antes que foi um fado que já existiu. De facto o fado terá pertencido, em tempos passados, a um meio que diziam ser das mulheres perdidas, de gente marginal, enfim dos tais chamados “fora da lei”. Eu própria, quando comecei a cantar, constituí um desgosto enorme para a família. Naquela altura as próprias cançonetistas nem queriam cantar fado, nem ser misturadas com fadistas. Depois tudo evoluiu, tudo veio a ser diferente. Hoje toda a cançonetista canta fado, mas antes de mim só os fadistas o faziam.

Improviso o meu canto a todo o momento, se o não faço não me divirto

-Passado que foi o tempo em que começou a cantar e, tal como diz, houve uma evolução. Amália Rodrigues tem alguma coisa a ver com essa evolução?

-Apesar de evitar sempre falar de mim própria, não seria honesta se não lhe dissesse que julgo ter tido uma certa influência no fado. O preto no vestir para se cantar o fado fui eu que o criei. Hoje quase toda a fadista canta de preto. As voltinhas na voz fui eu também que as inventei, pois, como filha de gente da Beira Baixa, trouxe ao fado aqueles rodriguinhos que a minha mãe me ensinou e que são uma característica do canto beirão. O fado era liso e, curiosamente, os tais rodriguinhos depois começaram a surgir tão repetidos e constantes na voz de algumas fadistas que acabaram por criar uma monotonia de sinal igual à do fado liso.

-As tais voltinhas na voz de que fala são uma característica que afinal muito a define…

-E que me permite divergir permanentemente o cantar. Eu própria me canso de ser igual. Improviso a todo o momento. Se o não faço não me divirto e na minha maneira de improvisar é que faço aquelas voltinhas.

-A Amália foi decerto a primeira voz portuguesa a ser verdadeiramente conhecida em Portugal. Entrou no domínio público com tal rapidez e força que, desde logo, ganhou uma enorme popularidade.

-A minha popularidade, inicialmente, aconteceu nem sei porquê. Naqueles primeiros tempos não havia quem ligasse grande importância aos fadistas. Havia um anúncio de quando em quando, que referia o Retiro da Severa, o Café Luso e pouco mais. Quem tinha rádio era rei e a rádio nem sequer estava muito expandida. E eu não conhecia quem quer que fosse que me pudesse ajudar. Contudo, um dia um senhor, que tinha o hábito de me ouvir no Cais da Rocha, porque eu tinha a mania de cantar na rua, apresentou-me um tocador de viola, o Santos Moreira, que gostou da minha voz e de imediato me convenceu a ir cantar no Retiro da Severa. Fui… e passados cinco meses era atracção no Teatro. Isto talvez há uns quarenta e dois anos e é praticamente desde essa altura que sou conhecida. Por sorte desde logo agradei…

-E de tal modo que pouco tempo depois já Amália levava o fado ao estrangeiro. Era, assim se pode dizer, a primeira internacionalização do fado. Até então o fado nunca tinha saído de Portugal.

-Tudo aconteceu muito naturalmente. Estrangeiros ligados ao meio artístico que vinham a Portugal ouviam-me e gostavam. Depois falavam com empresários ou directores artísticos e os contratos surgiam. A minha primeira saída foi ao Brasil em 1944. Por essa altura toda a gente fazia troça do fado. Cantei no Casino Copacabana, o sítio mais elegante no Rio de Janeiro. O sucesso foi grande, Depois sucederam-se outros países e firmei uma carreira no estrangeiro que, tal como em Portugal, foi conseguida sem quaisquer estruturas de apoio, sem quaisquer ajudas de casas discográficas. A minha promoção foi feita, unicamente, por aquilo que eu valia ou não valia. Ajudas? Sódo meu público. Ao público devo a minha carreira, ao público, a meus pais e a Deus.

-Sei que é católica?

-Ai, sou…

-Praticante?
-Convictamente...
-Fado…Religião…

-O fado tem muito a ver com Destino e o Destino é marcado por Deus.

-Sei também que é supersticiosa… e é uma mulher cheia de medos. Medo de viajar de avião… medo de enfrentar o público… medo da morte…

-Não há razões que o expliquem… ou talvez existam… Mas sou mesmo assim. É assim que eu funciono. De resto, sou uma pessoa para o negativo. Muito aberta ao assalto de ideias negativas. Claro que tenho defesas. Ir passear ao campo, por exemplo. Todos os dias o faço, dou longos passeios ao campo, contacto pessoas, apanho flores. Como vê tenho a casa cheia de flores.

Eu gosto é das histórias que eu gosto

-Coloca, por vezes, as coisas no imaginário, recusa aceitar algumas realidades. A sua aversão ao “fado canalha” é um exemplo.

-A verdade, por vezes, é-me completamente indiferente. Eu gosto é de histórias que eu gosto. O caso do fado... O fado para mim nasceu no mar… com a tristeza dos marinheiros ao estarem longe da terra, longe da família, longe dos amores. O fado é um lamento, uma queixa… E os portugueses, mesmo na própria poesia, têm pena de si próprios. Para mim, a história do fado, a razão do fado, é um pouco esta. O fado nasceu no mar…

-Pelo que me dá a perceber é muito dogmática nas suas próprias verdades…

-(Amália sorri) Há uns vinte anos fiz uns versos que diziam: “Ai de mim que vou vivendo/Ai, este mundo de desespero/Ai, tudo o que não entendo/Ai, o que entendo e não quero.” Julgo que aqui digo tudo. Aquilo que eu não quero entender não vale a pena eu não entendo. Dizem que a Severa morreu de uma ingestão de borrachos. Para mim morreu foi de amores. Mas que não, que morreu foi de indigestão. Não gosto! Para mim o bonito é ter morrido de amores…

-É notória a grande paixão da Amália pela poesia. Com a sua extrema sensibilidade, com a sua forma profunda e sentida de cantar contemplou o fado com poemas de alto significado de poesia erudita de poetas de língua portuguesa.Com Amália o fado ganhou mais dignidade pelos poemas de Camões, Vinicius de Morais, Pedro Homem de Melo, Ary dos Santos, José Régio…

- ... Alexandre O’Neill, José Gomes Ferreira, Manuel Alegre, David Mourão Ferreira e outros. Cantei estes poetas numa época já longe do período do chamado “Fado dos Ceguinhos”, dos primeiros fados que aprendi. Mas também cantei poetas populares como o Gabriel Oliveira e o Linhares Barbosa. E não deixo nunca de realçar a extrema importância de um outro poeta, mas este das notas da música, o Alain Oulman, que muito contribuiu, graças ao seu talento e à sua sensibilidade, para realçar a paixão que eu sempre pus nos poemas que canto.

-A Amália é uma pessoa simples. Sente-se, percebe-se é uma realidade. Contudo, talvez nem sempre a um artista a vaidade fique mal. Por vezes, estimula-o, dá-lhe vontade de ser melhor…

-Eu, no meu entender, acho que fica. E por isso sempre evitei falar de mim…e hoje o faço é porque me sinto para além de… é com se já estivesse morta. Agora o que nunca falei de outros artistas. Fosse quem fosse. Mas hoje fala-se muito de si próprio e dos outros. É quase como uma moda… Mas não é por moda que passei a falar um pouco de mim… a minha carreira está no fim e a observação de certas coisas que considero injustas força-me a referir casos que se passaram comigo. E por vezes com um tom azedo, que antes nunca tive…

-“Coisas que considera injustas”… Isso tem a ver com o período imediato ao vinte e cinco de Abril?

-Tem. Nessa altura é que me chamaram muitas coisas. Até disseram que eu era da PIDE.

-Quem, concretamente? Pessoas ligadas ao vinte e cinco de Abril? Membros de governos, por exemplo?

-Não, a nível das entidades oficiais nunca. Foram mais alguns jornalistas e principalmente alguns artistas. Mas, repare. É interessante… artistas que antes cantavam o “soldado que vais para a guerra”, “Angola é nossa”, e coisas assim é que hoje são tidos lá para a esquerda… eu até aceitava que Angola era nossa, mas valeu-me o meu bom gosto para nunca cantar nada disso. Mas ai de mim se o tivesse feito.

Sabe do que é que fui acusada? De ser comunista.

-Diz-se, no entanto, que terá sido uma vedeta aproveitada pelo anterior regime

-Não acredite nisso… são tudo balelas, nunca me ligaram qualquer importância. Agora é que quase me veneram, de vez em quando vem um membro do governo dizer que faço falta a Portugal.

-Todavia terá havido um certo rebate de consciência e as acusações sem sentido que lhe fizeram estão já ultrapassadas…

-Com certeza. Mas se há um rebate de consciência é porque houve um pecado. E é a memória desse pecado que, já nem me acompanhando todos os dias, me tem feito mal. Arranjei uma doença de coração… (Amália deixa cair algumas lágrimas. Por vezes as lágrimas são bem mais convincentes que todas as palavras, por maior eloquência que estas possam conter).

-Da forma magoada como refere essas acusações deduzo que abomina a PIDE.

-Discordo de tudo o que seja opressão. Mas de qualquer modo sempre fui uma pessoa muito afastada de politiquices…

-Nunca na sua vida interferiu directamente com qualquer caso político?

-(Amália solta uma gargalhada) A política é que já interferiu comigo…logo a seguir ao vinte e cinco de Abril fui chamada à Comissão de Extinção da PIDE. Fiquei surpreendida e muito mais quando me perguntaram se a PIDE alguma vez me tinha maltratado. Sabe de que é que tinha sido acusada? Imagine… de ser comunista. Com a PIDE só tive unicamente um contacto. E a tal história de ser comunista presumo que venha daí. Corria o ano de 1958, realizaram-se eleições. O Humberto Delgado concorreu, surgiram resultados e logo constou que a contagem de votos fora falseada. Como protesto, os artistas decidiram que durante três dias não actuariam em qualquer espectáculo. Eu recebi então muitas cartas anónimas em que me pediam que, como pessoa do povo, colaborasse no protesto. Acedi. Só que o disse a um amigo, dos tais de Peniche. A PIDE soube, apareceu-me em casa. E fizeram-me todas as pressões para que eu alterasse a atitude… que eu assumia uma atitude política… enfim, se quer que lhe diga nem me lembro quem eles eram e nunca mais na minha vida vi alguém da PIDE. Agora o que nunca pensei é que uma atitude minha pudesse ter tanta importância… no fundo nunca me senti Amália, sabe?...

-Mas a Amália há muito que é uma Diva, é um Mito…

-Para lhe dizer com franqueza essa conversa da imortalidade não me interessa. O mundo acaba quando eu morrer. Não me preocupa a história de ficar na História. Ou talvez me preocupe… não gosto de pensar na morte.

-Amália, uma última pergunta. Para si o que é o Fado?

-O Fado… não o sei definir, só o sei sentir…

Nuno Espinal, Revista “Espaço Aberto”.

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